sábado, 30 de janeiro de 2010

Pare, Escute, Olhe - Narrativa


Esta narrativa foi escrita durante as caminhadas que efectuámos pela via-férrea do Vale do Rio Tua que será, em parte, submersa se for construída a Barragem Hidroeléctrica de Foz-Tua.


Todos os textos apresentados em itálico são passagens bíblicas



Jorge Laiginhas/Leonel de Castro


I - Apenas existe aquilo que a nossa memória guarda.



No princípio criou Deus os céus e a terra. 

A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus movia-se sobre a face das águas. 

E disse Deus: 

- Haja luz. 

Houve luz. 

Viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas. Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro. 


E disse Deus: 

- Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas. 

Fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi. Chamou Deus à expansão Céus, e foi a tarde e a manhã, o dia segundo. 

E disse Deus: 

- Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi. 

Chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mar; e viu Deus que era bom. 

E disse Deus: 

- Produza a terra erva verde, erva que dê semente, árvore frutífera que dê fruto segundo a sua espécie, cuja semente está nela sobre a terra; e assim foi. E a terra produziu erva, erva dando semente conforme a sua espécie, e a árvore frutífera, cuja semente está nela conforme a sua espécie; e viu Deus que era bom. E foi a tarde e a manhã, o dia terceiro.


*


A Luísa encontrou o meu pai morto, arrefecido, no chão do quarto onde era suposto encontrá-lo esperto. Tinha a cabeça aberta e havia salpicos de sangue no chão e na mesinha de cabeceira. 


*


Colocaste as nossas faltas à tua frente

os nossos segredos sobre a tua luz.


*


Seis horas da manhã.

Viajar pela via-férrea do Tua – talhada a machado por deuses escravizados – é experimentar o efeito alucinogénio de pendurar os olhos numa janela donde se vê o chão do céu. Começou por ser um rio de esperança, a linha do Tua. Um rio de esperança que o sono dos homens afugentou. É, agora, antecâmara das memórias. Um modo ingénuo de gastar o que resta da sola dos sapatos ou, quiçá, o derradeiro sopro antes da nudez. Uma certa ocultação, por intermédio de metáforas, dos suspiros que suspiramos e não queremos. É não entregar o corpo – o nosso corpo ainda morno – às águias da noite. 


O desassossego da passarada acorda-me. Apalpo-me. Dou pelo frescor da madrugada colado à minha pele. Estremunhado, espreito os ombros das montanhas a nascente em busca de uma nesga de sol. Em vão.  

Espíritos, juncando o chão, murmuram um qualquer boato obscuro. A língua do vento apaga as velas da madrugada e eu, pecador, benzo-me para afastar os mosquitos. Não. De todo. Não me benzo para remissão dos meus pecados. Não. Benzo-me para afastar os mosquitos que zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz me picam os olhos. Os meus olhos. 


 A estação 

[estação do caminho-de-ferro, vulgo, estação dos comboios]

de Foz Tua, lambida por uma melosa quietude, apresenta-me as sombras, com as quais dormira. Cumprimentamo-nos dentro da ausência. Uma ausência afiada no gume do crepúsculo.

Para lá da lousa distante do céu adivinho um lugar onde todas as chagas cicatrizam. A luz, coada pelas nuvens rasantes, ganha a agudeza de uma lâmina. Repudio as sombras oleosas que escorregam pelo vale delindo as arestas das penedias circundantes.


*


Fiquem envergonhados e confundidos

aqueles que buscam perder a minha vida!

Recuem e fiquem envergonhados

aqueles que tramam a minha desgraça!

Fiquem mudos de vergonha

aqueles que se riem de mim!


 
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