
Seis e trinta da manhã.
Atravesso o Viaduto das Presas – um viaduto, coladinho à montanha, que une as duas abas da encosta. O viaduto foi construído para passar o comboio. Apenas o comboio. Não pessoas. Agarrado à grade de protecção lateral, caminho, devagar, com o medo a pesar-me nos pés. A grade de ferro, fria e húmida, cola-se à minha mão. No chão do meu olhar, o rio Tua. Sinto a minha cabeça pesada. Muito pesada. Tão pesada que, por uma fracção de segundo, a deixo cair...
Corro, sempre agarrado ao varão lateral do viaduto, até ao término deste.
Já em terra firme, desavindo com a minha vida, apedrejo o rio que, indefeso, recolhe as pedras com a boca. O suor rasga-me sulcos na testa. O coração lateja-me nas fontes. Trago um pensamento entalado, qual espinha de peixe, na garganta.
Olho os bicos dos montes a lamberem a cinza do céu e tenho a certeza que apenas a morte é real.
Poucas passadas depois do viaduto abre-se-me um túnel. Túnel das Presas. Entro naquela mina fria e húmida. Do tecto pingam vozes. Não vozes. Sons. Pelas paredes escorrem sombras quase tácteis. Tropeço nas pedras soltas da via-férrea. Tropeço nos carris da via-férrea. Tropeço. Caio. Levanto-me. Marcho. As minhas pernas ajoelham-se. Caminho. Caminho.
Poucos instantes depois de sair do túnel dou pelo rio a gargalhar nos meus ouvidos.
*
Porque eu reconheço a minha culpa,
e o meu pecado está sempre na minha frente.
*
Sete horas e dez minutos.
Um pequeno exército de florinhas brancas desafia o nariz da minha máquina fotográfica. Disparo. Instintivamente. Como se eu fosse um caçador e as florinhas um bando de perdizes. Mato. Por ciúme. Sim. Por ciúme. Estendo o meu corpo, vivo, sobre as florinhas mortas.
- Apenas existe aquilo que a nossa memória guarda – encolho os ombros.
A via-férrea estende-se, diante de mim, até se dissolver numa curva à esquerda, lá longe. Encho os pulmões de florinhas, de vento fresco com cheiro a florinhas, e boto-me a jornadear com pressa de chegar. Não sei aonde. Por agora, apenas quero caminhar…
É provável que o meu pai tenha subido à cama para substituir a lâmpada do tecto do quarto. É provável que se tenha desequilibrado, caindo. Sabe-se que bateu com a cabeça na esquina da mesinha de cabeceira e teve morte imediata.
Sem comentários:
Enviar um comentário