sábado, 30 de janeiro de 2010



Penso nos últimos lábios que beijei e dou pela minha língua húmida. O relógio da estação dos comboios olha-me e, aparvalhado, espreito o meu pulso só para mostrar à estação que não preciso das suas horas. Também eu tenho relógio. A alma, a minha alma, sussurra-me:

- Talvez morrer não doa muito…

Uma das portas da estação bateu, por acção do vento, e a minha alma estrebuchou. Avanço até à porta. Entro na sala de espera da estação e apalpo penumbras agarradas às paredes. Escuto gritos silenciados. Saio dali, qual cavalo alucinado, e inicio um trote arrítmico.


*


Carrego a mochila às costas e, pendurada ao pescoço, a máquina fotográfica. Numa das mãos a Bíblia e na outra um caderno e uma esferográfica.

- Que as pernas me carreguem até onde o caminho me pertença – inspiro o frescor das ervas que bordejam a via-férrea.

Despido de verdades ou mentiras, crente que se há anjos, e diabos, hei-de cruzar-me com eles, faço-me ao caminho.


Quem viaja espreita o mundo, experimentando-o. Desenha milagres de cruz. O viajante busca o sonho, qualquer que ele seja, sabendo que os pesadelos são apenas as curvas da viagem. Alpondras sobre as quais posamos, fiat lux, como se fôssemos os actores principais dum filme cujo cenário é um pedaço de chão algures entre o céu e o inferno. Quem viaja aceita ser mais olhar que corpo.


Por agora, neste pensamento, apenas quero escoar os minutos pela via-férrea acima e não adiar a luta feroz que, dentro de mim, está a acontecer. A luta entre a coragem e a cobardia.
Sei-me enredado numa torrente meditativa em busca da raiz de uma árvore – uma só raiz – à qual possa fincar as mãos. Quero ter coragem de voltar a olhar as estrelas, uma depois a outra, e reconciliar-me com a vida possível.

O céu está tão próximo da minha cabeça que me comovo. Soberbo, acredito que me bastará esticar o braço e logo a minha mão tocará o céu!

O portão que dá para uma quinta convida-me a espreitar. Empurro o portão. O ranger dos gonzos e coiceira arranha-me a espinal-medula. Espreito.

Um cão, preso a uma oliveira por uma corda suficientemente grande para que possa evitar que indesejáveis transponham o portão, corre para mim, tresloucado, como se eu fosse um naco de carne. Fujo.


Já a uma centena de passos dos dentes do cão paro, olho para trás, e, horripilado, sinto as mãos do meu pai pousadas sobre o meu ombro. Pressinto, inclusive, o calor da mão do meu pai a aquecer a minha omoplata! Oiço a sua voz. A voz do meu pai…

- Volta para casa.

O bafo da voz do meu pai humedece a atmosfera e, húmida, a atmosfera turva-me o olhar. Um quase-vento sacode a madrugada e espalha onomatopeias pelas redondezas.

Quem me dera ter coragem para descer ao rio, lavar os olhos, e voltar para casa!...


*


Os que me odeiam murmuram juntos contra mim,

e, junto de mim, comentam a minha desgraça:

- Caiu sobre ele uma praga do inferno,

está deitado e nunca mais se vai levantar!




 
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